29 de outubro de 1946. A guerra do vinho no país das uvas
Os bebedolas de Lisboa estremeceram de terror no conforto das tabernas: "Vai faltar o vinho!" Essa agora! Mas Portugal sem vinho era português? Havia quem tivesse muitas dúvidas.
Eis uma notícia arrepiante, capaz de deixar qualquer português de boa cepa, da estirpe de um Jacinto de Tormes, tão aflito que não aguentaria de comichões no sangue: “Vai faltar vinho em Lisboa!” Os velhotes que se juntavam nas tabernas da Rua das Portas de Santo Antão devem ter estremecido de alto a baixo dos seus alicerces de bebedolas e soltado uma grosa de palavrões. E ninguém ficou indiferente. Ninguém! Nesse ano de 1946, ii Guerra a perder-se num horizonte magoado, o vinho era mais do que necessário, era fundamental. Fazia parte da idiossincrasia do povo. Portugal sem vinho era muito menos português.
Facto: os armazenistas viam escassear as suas reservas. Outro facto, subsequente: os retalhistas não encontravam forma de se reabastecerem. Conclusão: já havia bodegueiros a racionar o tinto e o branco, o que fazia desesperar os clientes.
Reunião de emergência na Junta Nacional dos Vinhos! Um dos armazenistas mais antigos, mais respeitado, daqueles que já tinham convivido com tonéis incontáveis, pediu a palavra e questionou o presidente da junta, o dr. Mário Oliveira, sobre o drama que estavam a viver: “Diga-nos o que se passa, por favor! Temos de retomar os fornecimentos com urgência!”
Os armazenistas estavam organizados em grémio. Por sua vez, os retalhistas desconfiavam que os armazenistas estavam a entrar no caminho do açambarcamento e que, daí, passariam à especulação dos preços. Pelo que ameaçavam com uma queixa às autoridades fiscalizadoras. O assunto era confuso. Havia proprietários de tascos que sentiam que não haveria outra solução senão fechar portas, temporariamente que fosse.
O presidente da Junta Nacional dos Vinhos explicou-se como pôde. Que as vindimas se tinham atrasado, que a produção, além de tardia, era escassa, que ainda não havia um conhecimento preciso das quantidades disponíveis para distribuição, que o próprio ministro da Economia estava ciente da crise e se mantinha diariamente atento ao desenrolar dos acontecimentos.
São Martinho
Dia 11 de novembro aproximava-se a olhos vistos, o São Martinho sempre foi dia de escorropichar vinhaça e água-pé, com castanhas à mistura, alguns dos taberneiros tinham comprado as adegas disponíveis, outros estavam de mãos a abanar, havia uma clara desigualdade e, ainda por cima, os preços andavam à solta como os pombos da cidade, com lavradores a aproveitarem para praticar valores acima da tabela, abusando do desespero de alguns, funcionando à margem do controlo do mercado. Ninguém sabia ao certo o valor do vinho, essa é que era essa. E cabia à junta regular a matéria.
Bem prometia o dr. Oliveira que tudo ficaria resolvido antes do dia 11. Ninguém confiava. A reunião começou a transformar-se num salsifré. Uns falavam por cima dos outros. As vozes alteravam-se a cada momento. Era o vinho! Era o vinho! Nanja que os armazenistas estivessem pianchos, era o que faltava, se tivessem um litro que fosse disponível, escolheriam vendê-lo e não bebê-lo, mas não escondiam uma efetiva aflição.
Ah! O vinho! O vinho que merece gritos de alegria como no Pátio das Cantigas quando um trapalhão, ao pregar algo numa parede, fura uma das pipas do Evaristo, o droguista: “É vinho!!! É vinho!!!” O grito anunciava um milagre. O vinho que merece a poesia do escritor que percebia mais de aguardentes: “Não só vinho, mas nele o olvido, deito/ Na taça: serei ledo, porque a dita/ É ignara. Quem, lembrando/ Ou prevendo, sorrira?/ Dos brutos, não a vida, senão a alma/ Consigamos, pensando; recolhidos/ No impalpável destino/ Que não ‘spera nem lembra/ Com mão mortal elevo à mortal boca/ Em frágil taça o passageiro vinho/ Baços os olhos feitos/ Para deixar de ver”. Vinho em ode e não em odre, pela pena de Ricardo Reis.
Na sala, apertada, o ambiente fervia. José Baptista, diretor do Grémio dos Armazenistas, levou a contenda para o lado pessoal e aporrinhou fortemente Mário Oliveira. Que um ano antes, exatamente, tinha ali estado contra a sua vontade, a vê-lo tomar posse, e que fora incapaz de aplaudir essa posse porque sentia que o novo responsável pela junta iria prejudicar francamente aqueles que da venda de vinho viviam. Foi mais longe. Confrontou o dr. Oliveira com a promessa feita, na tomada de posse, de que iria resolver o problema do fornecimento e facilitar os contactos comerciais entre produtores e armazenistas e, como se via, tinha sido tudo da boca para fora e estavam todos ali a assistir à falsidade de tal promessa.
Mário Oliveira espinafrou-se. Quando outro armazenista se queixou de que estava à beira de perder tudo o que tinha ganho em dez anos de trabalho árduo, tratou de reclamar a bondade do seu serviço. Afinal, conseguira que o Governo autorizasse a baixa da graduação do vinho dando, com isso, uma compensação aos armazenistas e permitindo-lhes maior margem de lucro no negócio. Depois fartou-se de vez e deu às de Vila Diogo. Eles que ficassem a falar sozinhos. A paciência esgotara-se.
Ainda assim, chegou-se a uma proposta de solução. Requisitaria a Junta Nacional dos Vinhos todo o vinho que estivesse na posse de pessoas não inscritas legalmente como negociantes do produto e vendê-lo-ia aos armazenistas ao preço fixo de 2$00 por litro, passando o preço ao público para 3$00 por litro. Era assim uma espécie de “o vinho a quem ele pertence!”, afastando de vez quaisquer tentativas de abertura de mercado. Nada de liberalismos! O vinho não estava para isso. E a medida teria foros de incontornável: quem se recusasse a entregar o vinho que tivesse em sua posse à Junta Nacional dos Vinhos seria esbulhado dele em nome do interesse nacional. A junta iria confiscá-lo para o tornar de consumo público.
Mário Oliveira já não estava na sala. Mas os armazenistas, depois desta proposta, sentiram-se apaziguados. Era o que faltava que andassem para aí uns beb’águas a venderem vinho!