Carta aberta de cientistas e médicos arrasa informação prestada pela DGS

Revela “sintomas claros da ausência de um verdadeiro Sistema de Informação para a Saúde Pública e de uma cultura sistemática e enraizada de dados”, acusa a Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social.

O trabalho de divulgação e disponibilização de dados por parte da Direção-Geral de Saúde (DGS), ainda que “tenha melhorado ao longo da epidemia”, tem sido pautado por “muitos atrasos, retrocessos, inconsistências e más práticas de partilha de dados”.

E se “algumas dever-se-ão a erros humanos – totalmente compreensíveis – por parte de quadros clínicos sob grande pressão e elevadas cargas de trabalho”, outras, “mais fundamentais”, revelam “sintomas claros da ausência de um verdadeiro Sistema de Informação para a Saúde Pública e de uma cultura sistemática e enraizada de dados”.

Estas críticas constam de uma carta aberta de várias entidades com experiência na área de ciência dos dados e da saúde onde expõem “as falhas na disponibilização de dados por parte da DGS” e oferecem ajuda técnica e estratégica, apelando “a uma maior colaboração com a sociedade civil no desenho de uma estratégia melhor”.

Escrita e enviada à DGS pela Associação Portuguesa de Ciência de Dados para o Bem Social (DSSG PT), a carta aberta foi também assinada, até ao momento, pela Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Movimento Tech4Covid19.

Intitulada “Por uma melhor estratégia de dados da Direcção-Geral de Saúde no combate à epidemia covid-19 em Portugal”, afirmam que o repositório de dados da Proteção Civil Italiana ou o dashboard da epidemia em Singapura são “exemplos de excelência das aplicações práticas” neste domínio

“Na tentativa de colmatar a inexistência de uma estratégia de dados abertos por parte da DGS do Ministério da Saúde Português”, a DSSG PT propôs-se a disponibilizar “em formatos facilmente processáveis e nativos da comunidade analítica (ficheiros estruturados CSV/Excel/JSON), da forma mais atempada possível, todos os dados que a DGS vai disponibilizando”.

Surgiu, assim, “o repositório de dados covid19-pt-data, um espaço centralizador de dados oficiais em formatos de fácil processamento, e que rapidamente acumulou milhares de visualizações e variados utilizadores, tanto institucionais como individuais”, garante a DSSG PT.

Lista das 12 “falhas” no tratamento e partilha de dados da DGS

De resto, com base “na experiência diária de actualização” dos dados fornecidos pela DGS desde o dia 15 de Março, na carta aberta enviada à entidade liderada por Graça Freitas é elencada uma lista das alegadas “más práticas” de partilha de dados:

– “Disponibilização dos boletins diários num formato não-estruturado (PDF), cuja extracção de dados não é trivial”;

– “Constantes mudanças no formato do boletim em termos de aspecto e estrutura, o que dificulta abordagens mais avançadas para extracção automática de dados”;

– “Constantes mudanças nos indicadores clínicos disponibilizados (adição de indicadores, remoção de indicadores, alteração das grandezas utilizadas), o que causa incertezas no planeamento de potenciais análises e projectos científicos”;

– “A existência de dados processados dentro dos boletins em formatos completamente imperscrutáveis: gráficos (ao invés dos dados absolutos que lhes deram origem) com eixos demasiados esparsos e legibilidade reduzida. Para todos os efeitos, estes dados estavam bloqueados, impossibilitando qualquer outra análise que não a aí apresentada”;

– “O grande diferencial entre a data de publicação dos dados e a data a que dizem respeito (12h), numa situação em constante evolução e que exige respostas rápidas e informadas”;

– “Ausência de um dicionário de dados, de um glossário científico e de notas metodológicas acerca da recolha dos dados reportados, o que leva a muitos exercícios especulativos nas redes sociais/meios de comunicação social após o lançamento dos boletins. Exercícios estes que meramente se acumulam sobre a pilha de desinformação já circulante”;

– “Inconsistências pontuais entre valores totais e a respectiva divisão em sub-grupos, denotando a inexistência de mecanismos automáticos de verificação de qualidade dos dados e comprometendo a confiança e a transparência institucionais”;

– “Paragem na actualização dos dados relativos à linha SNS24 a partir de 9 de Março, no portal Transparência – SNS, numa altura em que foram levantadas muitas questões acerca da sua capacidade e eficácia”;

– “Paragem, na plataforma de Vigilância de Mortalidade da DGS, da actualização dos dados sobre mortalidade por Administração Regional de Saúde a partir de 19 de Fevereiro, assim como da ferramenta de previsão de mortalidade, sendo apenas comunicada a mortalidade total e por distrito”;

– “Falta de conhecimento acerca do número de testes disponíveis e efectuados, assim como a respectiva tipologia, metodologia de aplicação e o modo como esta se reflecte nos restantes indicadores clínicos”;

– “Inexistência de informação, global ou estratificada, acerca de equipamento e infraestrutura disponíveis, como por exemplo o número de quartos individuais de isolamento, de camas em unidades de cuidados intensivos ou de ventiladores”;

– “Inexistência de um sistema de informação integrado no SNS que permita a criação automática de um relatório com base nas contagens dos infetados por região.”

Um, dois, três elogios ao sistema de informação da DGS

A crítica ao trabalho de dados feito pela DGS, que os subscritores da carta aberta desejam que seja vista como “construtiva”, é acompanhado por três grandes elogios. A saber:

– “Não obstante problemas de legibilidade e clareza de linguagem, a ideia do boletim diário é boa. O boletim é um recurso visualmente forte, conciso e de entendimento fácil pela população em geral. O boletim deve ser meramente uma ferramenta numa panóplia mais alargada de estratégias de comunicação de dados – nunca, de modo algum, a única”;

– “A adequada frequência de actualização dos dados. Embora os dados pecassem por terem um atraso considerável, publicá-los a um ritmo diário é uma boa escolha. Publicações mais frequentes só alimentariam a obsessão monotemática dos órgãos de comunicação social e, por conseguinte, da sociedade civil; publicações menos frequentes dariam demasiado azo a rumores e especulação”;

– “A resposta ao ‘feedback’ dado pela sociedade no que diz respeito a alguns dos problemas detectados na estratégia de dados da DGS foi um ponto positivo. Neste ponto, merece especial atenção a disponibilização de dados que foi anunciada após uma petição pública subscrita por várias entidade de investigação científica. Ficou comprovado que existe uma abertura à crítica construtiva e a colaborações com membros da sociedade civil, o que é um ponto positivo de extrema importância. Contudo, até à data, não se materializou.”

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